quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Acorde final...

...


























































Acorde Final...

"Eu havia colocado no toca-discos
aquele disco com poemas
de Vinícius e do Drumonnd,
disco antigo,
long-play,
o perigo são os riscos
que fazem a agulha saltar,
felizmente até ali
tudo tinha estado liso e bonito,
sem pulos e sem chiados,
o próprio Vinícius,
na sua voz rouca de uísque e fumo,
havia recitado os sonetos
da separação,
da despedida,
do amor total,
dos olhos da amada.


Chegara finalmente
o último poema,
meu favorito,
"o haver"

- o Vinícius percebia
que a noite estava chegando,
tratava então de fazer
um balanço de tudo
o que se fez e disso,
o que foi que
sobrou?

Por isso
as estrofes
começam todas
com uma mesma palavra,
"resta..."

- foi isso que sobrou.


Resta essa capacidade de ternura,
essa intimidade perfeita
com o silêncio...

Resta essa vontade
de chorar diante da beleza,
essa cólera cega
em face da injustiça
e do mal entendido...

Resta essa faculdade
incoercível de sonhar
e essa pequenina luz
indecifrável
a que às vezes os poetas
tomam por esperança...


Começava
naquele momento
a última quadra,
e de tantas vezes lê-la
e outras tantas ouvi-la,
eu já sabia de cor as suas palavras,
e as ia repetindo dentro de mim,
antecipando a última,
que seria o fim,
sabendo que tudo o que é belo
precisa terminar.


O pôr-do-sol é belo
porque as suas cores
são efêmeras,
em poucos minutos
não mais existirão.

A sonata é bela
porque sua vida é curta,
não dura mais
que vinte minutos.


Se a sonata
fosse uma música sem fim
é certo que o seu lugar seria
entre os instrumentos
de tortura do diabo,
no inferno.


Até o beijo...

Que amante suportaria
um beijo
que não terminasse nunca?



O poema também tinha de morrer
para que fosse perfeito,
para que fosse belo
e para que eu tivesse
saudades dele,
depois do seu fim.


Tudo o que fica perfeito
pede para morrer.


Depois da morte do poema
viria o silêncio,
o vazio.


Nasceria então
outra coisa no seu lugar:
a saudade.

A saudade
só floresce na ausência.


É na saudade
que nascem os deuses
- eles existem
para que o amado
que se perdeu
possa retornar

- que a vida seja como o disco,
que pode ser tocado
quantas vezes se desejar.


Os deuses
- nenhum amor tenho por eles,
em si mesmos.

Eu os amo só por isso,
pelo seu poder
de trazer de volta
para que o abraço se repita.

Divinos não são os deuses.

Divino é o reencontro.


A voz de Vinícius
já anunciava o fim.


Ele passou a falar mais baixo.

Resta esse diálogo cotidiano
com a morte,
esse fascínio
pelo momento a vir,
quando, emocionada,
ela virá me abrir a porta
como uma velha amante...


E eu, na minha cabeça,
automaticamente me adiantei,
recitando em silêncio
o último verso:

".. Sem saber
que é a minha
mais nova namorada."


Foi então que,
no último momento,
o imprevisto aconteceu:

a agulha pulou para trás,
talvez tenha achado
o poema tão bonito
que se recusava
a ser uma cúmplice do seu fim,
não aceitava a sua morte,
e ali ficou a voz morta do Vinícius
repetindo palavras sem sentido:


"sem saber que é a minha mais nova"...
"sem saber que é a minha mais nova"...
"sem saber que é a minha mais nova..."


Levantei-me do meu lugar,
fui até ao toca-discos,
e consumei o assassinato:

empurrei suavemente
o braço com o meu dedo,
e ajudei a beleza a morrer,
ajudei-a a ficar perfeita.


Ela me agradeceu,
disse o que precisava dizer,
sem saber que
é a minha mais nova namorada...

Depois disso foi o silêncio.


Fiquei pensando se aquilo
não era uma parábola
para a vida,
a vida como uma obra de arte,
sonata,
poema,
coreográfico.


Já no primeiro momento
quando compositor,
ou o poeta ou o dançarino
preparam a sua obra,
o último momento
já está em gestação.

É bem possível que
o último verso do poema
tenha sido o primeiro
a ser escrito
por Vinícius.

A vida é tecida
como as teias de aranha:
começam sempre do fim.


Quando a vida começa do fim
ela é sempre bela
por ser colorida
com as cores do crepúsculo.


Não,
eu não acredito
que a vida biológica
deva ser preservada a
qualquer preço.

"para todas as coisas
há o momento certo.


Existe o tempo de nascer
e o tempo de morrer"
(Eclesiastes 3, 1s).


A vida não é uma coisa biológica.


A vida é uma entidade estética.


Morta a possibilidade
de sentir alegria diante do belo,
morreu também a vida,
tal como Deus no-la deu
- ainda que a parafernália
dos médicos
continue a emitir
seus bips
e a produzir
ziguezagues
no vídeo.


A vida é como aquela peça.


É preciso terminar.


A morte
é o último acorde que diz:
está completo.

Tudo o que se completa
deseja morrer".



by Ruben Alves

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e foi isso
moça


e ao mesmo tempo
tudo o que falta
sempre
encontra
o porquê...

a falta
que sentimos
de algo
que não
se vê...



aNTONIocARLos


Ah! Gosto!
2oo7
:)



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