segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Sobre Alice



















É difícil falar de amor.
Prova disso é a infinidade de músicas, poesias e comédias românticas produzidas até hoje.

Mas ainda há quem consiga ser original, romântico e sincero.
É o caso do escritor e jornalista
Calvin Trillin, autor de Sobre Alice , que é um livro de amor, digamos assim.

Mas daquele amor que quase já não vemos mais.

Sabe aqueles casais de velhinhos, casados há 200 anos, que todo ano (no dia dos namorados, mais precisamente) aparecem na tevê contando suas belas e engraçadas histórias de amor?

Pois, é quase isso.
A protagonista do livro chama-se Alice, é óbvio.

O detalhe é que Alice não é uma personagem, nem Sobre Alice uma ficção: a protagonista é a esposa de Calvin, e o livro, as memórias de um homem eternamente apaixonado.
Em pouco mais de oitenta páginas, Calvin Trillin faz um percurso por toda a sua relação com Alice.
Um percurso rápido, é verdade, mas narrado de uma maneira tão carinhosa e emocionada que sentimos a dimensão do seu amor pela esposa.

Um amor que não caberia nem em milhões de páginas.

Talvez por isso a opção de ser breve, por talvez pensar que não conseguiria terminar o livro, caso se estendesse mais. O casal se conheceu no final de 1963, em uma festa da revista
Monocle.

Calvin afirma que, quando viu Alice pela primeira vez,
"... ela parecia estar mais viva do que qualquer pessoa que eu vira antes. Parecia brilhar".

Desse primeiro encontro, no qual conversaram pouco, para o casamento, depois de conversarem e se encontrarem bastante, não demorou muito: a união aconteceu em 1965.
A impressão que se tem é que, sem Alice, Calvin não seria o homem que é.
Aliás, é o que ele diz o tempo inteiro, indiretamente. Com seu jeito especial e com uma maneira um tanto quanto precavida de lidar com os assuntos do dia-a-dia, Alice foi moldando seu marido e suas filhas ― o casal teve duas.

Em um artigo escrito publicado na New Yorker, ele diz que

"A essa altura, a política de minha mulher em relação a freqüentar as peças de teatro da escola (...) já é bem conhecida: ela acha que se você (...) não assiste a todas as apresentações (...) o Estado vem e leva seu filho embora".

Até as finanças da casa Alice parecia controlar:

"A Lei de Fluxo de Caixa Compensatório de Alice estabelece que qualquer quantia que não for gasta com luxos pelos quais você não pode pagar equivale a um lucro inesperado.".

Mas não é só por isso que podemos dizer que Alice é uma grande mulher.

E também pela vontade que Alice tinha de viver e de cuidar das pessoas.
Em 1976 foi detectado em Alice um câncer de pulmão.
Uma cirurgia retirou o tumor maligno, junto com um dos lóbos pulmonares.
E ela teve uma chance de dez por cento de sobrevivência'".
O mesmo tratamento de radioterapia que lhe deu mais 25 anos de vida, contrariando a "expectativa" do médico, foi o que tirou a sua vida, em setembro de 2001 .

É impossível não se emocionar com o livro.

Ao chegar nas últimas páginas, a emoção de Calvin se intensifica, e certamente alguns leitores não conseguirão segurar as lágrimas. Que, para serem enxugadas, basta lembrar das "Leis de Alice" e de algumas passagens engraçadíssimas narradas por Calvin.
Alice Stewart Trillin, "educadora, escritora e musa" (como diz o obituário publicado pelo New York Times), deu título a outros dois livros escritos pelo marido: o já citado Alice, let's eat e Travels with Alice.

Isso sem contar as centenas de artigos que Calvin escreveu e que têm Alice como personagem ou protagonista.

No enterro de Alice, a escritora Nora Ephron

"descreveu os que estavam sob sua proteção como 'qualquer um que ela amasse, ou de quem gostasse, ou conhecesse, ou conhecesse alguém que conhecesse, ou que nunca tivesse visto antes na vida, mas tivesse ficado conhecendo depois que a pessoa achou o telefone na lista e ligou'".

Sem dúvida, uma mulher adimirável, especial, enfim, uma grande mulher.

Nesses escritos, que são só uma parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma dobradinha humorística, em que Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida. À primeira vista, isso confirma a regra:

A vida de casal é um tema cômico.
Mas as crônicas de Trillin eram delicadas e tocantes:
Engraçadas, mas nunca grotescas.
Trillin não zombava da dificuldade da vida de casal:
Ele nos divertia celebrando a alegria do casamento.
Qual era seu segredo?
Quando Alice, morreu em 2001, Trillin escreveu então "Sobre Alice".
Apaixonado sem parecer piegas, objetivo, porém bem-humorado, assim Calvin retrata trechos de sua vida em família e da luta de Alice contra um câncer por mais de duas décadas.
Ele descreve a mulher com uma paixão que só é merecedora quem já partiu deste mundo, ele a exalta.
Mas mesmo sendo assim não foge da realidade e consegue deixar quem está lendo com uma pontinha de inveja da cumplicidade do casal e da coragem e resiliência de Alice.

O segredo é o seguinte:

Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios literários, eram os próprios.

A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência. Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de "Sobre Alice":

"Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três refeições por dia".

A graça está no fato de que a "propensão" de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.
Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir qualidades e defeitos:
Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel.

Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa.

Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o de Alice.

Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante:

A aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal.

Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir.

Trillin completou a fórmula:

Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo.
Com isso, ele descobriu a receita do amor que dura.


Vale a leitura: é leve, com poucas páginas e muita espiritualidade, vale com exemplo de vivência alheia, ou no mínimo como inspiração ...














(Editora Globo, 2007, 93 págs.),


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foi isso moça bonita...

tenha uma excelente semana


Antonio carlos