sábado, 5 de dezembro de 2009

Tecelã...






Tecelã...



Acordava ainda no escuro,
como se ouvisse o sol chegando
atrás das beiradas da noite.

E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia.

Delicado traço cor da luz,
que ela ia passando
entre os fios estendidos,
enquanto lá fora
a claridade da manhã
desenhava o horizonte.

Depois lãs mais vivas,
quentes lãs iam tecendo
hora a hora, em longo tapete
que nunca acabava.

Se era forte demais o sol,
e no jardim pendiam as pétalas,
a moça colocava na lançadeira
grossos fios cinzentos
do algodão mais felpudo.

Em breve, na penumbra
trazida pelas nuvens,
escolhia um fio de prata,
que em pontos longos
rebordava sobre o tecido.

Leve, a chuva vinha
cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias
o vento e o frio
brigavam com as folhas
e espantavam os pássaros,
bastava a moça tecer
com seus belos fios dourados,
para que o sol voltasse
a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira
de um lado para outro
e batendo os grandes pentes do tear
para frente e para trás,
a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava.

Na hora da fome
tecia um lindo peixe,
com cuidado de escamas.

E eis que o peixe estava na mesa,
pronto para ser comido.

Se sede vinha,
suave era a lã cor de leite
que entremeava o tapete.

E à noite, depois de lançar
seu fio de escuridão,
dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia.

Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo,
ela própria trouxe o tempo
em que se sentiu sozinha,
e pela primeira vez
pensou em como seria bom
ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte.

Com capricho de quem tenta
uma coisa nunca conhecida,
começou a entremear no tapete
as lãs e as cores
que lhe dariam companhia.

E aos poucos seu desejo foi aparecendo,
chapéu emplumado, rosto barbado,
corpo aprumado, sapato engraxado.

Estava justamente acabando
de entremear o último fio
da ponta dos sapatos,
quando bateram à porta.

Nem precisou abrir.

O moço meteu a mão na maçaneta,
tirou o chapéu de pluma,
e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele,
a moça pensou nos lindos filhos
que teceria para aumentar ainda mais
a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo.

Mas se o homem tinha pensado em filhos,
logo os esqueceu.

Porque tinha descoberto
o poder do tear,
em nada mais pensou
a não ser nas coisas todas
que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher.

E parecia justo,
agora que eram dois.

Exigiu que escolhesse
as mais belas lãs cor de tijolo,
fios verdes para os batentes,
e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa,
já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou.

Sem querer resposta imediatamente
ordenou que fosse de pedra
com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses
trabalhou a moça tecendo tetos e portas,
e pátios e escadas, e salas e poços.

A neve caía lá fora,
e ela não tinha tempo
para chamar o sol.

A noite chegava,
e ela não tinha tempo
para arrematar o dia.

Tecia e entristecia,
enquanto sem parar
batiam os pentes
acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto.

E entre tantos cômodos,
o marido escolheu para ela e seu tear
o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse.

E antes de trancar a porta à chave, advertiu:

— Faltam as estrebarias.

E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher
os caprichos do marido,
enchendo o palácio de luxos,
os cofres de moedas,
as salas de criados.

Tecer era tudo o que fazia.

Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo,
ela própria trouxe o tempo
em que sua tristeza lhe pareceu
maior que o palácio
com todos os seus tesouros.

E pela primeira vez
pensou em como seria bom
estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer.

Levantou-se enquanto o marido dormia
sonhando com novas exigências.

E descalça, para não fazer barulho,
subiu a longa escada da torre,
sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou
escolher linha nenhuma.

Segurou a lançadeira ao contrário,
e jogando-a veloz
de um lado para o outro,
começou a desfazer seu tecido.

Desteceu os cavalos,
as carruagens,
as estrebarias,
os jardins.

Depois desteceu os criados e o palácio
e todas as maravilhas que continha.

E novamente se viu na sua casa pequena
e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava
quando o marido
estranhando a cama dura,
acordou, e, espantado,
olhou em volta.

Não teve tempo de se levantar.

Ela já desfazia
o desenho escuro dos sapatos,
e ele viu seus pés desaparecendo,
sumindo as pernas.

Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo,
tomou o peito aprumado,
o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse
a chegada do sol,
a moça escolheu uma linha clara.

E foi passando-a devagar
entre os fios,
delicado traço de luz,
que a manhã repetiu
na linha do horizonte.


e então é isso
tecemos nossa vida
e as tramas
que a vida tem

esquecemos porém
que quando a trama
trama contra nós
é só ter
a coragem
de destecer
cada trama
nó por nó
e inventar nova trama
pra ser feliz
com alguém...



1/2 beijo
minha cara
minha doce
minha voz de anjo
moça bonita
tecelã na minha vida
junto comigo
nestas tramas
as mesmas tramas
que tantos tramam
onde de repente
se deixa de sonhar
e passa-se a viver
pelas coisas do ESTAR
esquecendo que
a maior valia da gente
continua no SER

SER FELIZ
POR MUITO AMAR




10embro
2oo9

antoniocarlos


Texto: A Moça Tecelã - “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, Marina Colasanti - É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
Música : Grito de Alerta - Gonzaguinha

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