quinta-feira, 10 de setembro de 2009

VORAGEM

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Agora a música...




E o texto...

VORAGEM


Nada me prende a nada.

Quero cinqüenta coisas
ao mesmo tempo.

Anseio com uma angústia
de fome de carne
o que não sei que seja -
Definidamente
pelo indefinido...

Durmo irrequieto,
e vivo num sonhar irrequieto
de quem dorme irrequieto,
metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas
abstratas e necessárias.

Correram cortinas
de todas as hipóteses
que eu poderia ver da rua.

Não há na travessa achada
o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida
para que tinha adormecido.

Até os meus exércitos sonhados
sofreram derrota.
Até os meus sonhos
se sentiram falsos
ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta
- até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
e um tédio que é até do tédio
arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro
compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível
aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura
me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto,
nem outra coisa,
nem coisa nenhuma...

E, no fundo do meu espírito,
onde sonho o que sonhei,
nos campos últimos da alma,
onde memoro sem causa

(E o passado é uma névoa natural
de lágrimas falsas),

Nas estradas e atalhos
das florestas longínquas
onde supus o meu ser,
fogem desmantelados, últimos restos
da ilusão final,
os meus exércitos sonhados,
derrotados sem ter sido,
as minhas cortes por existir,
esfaceladas em Deus.


Outra vez te revejo,
cidade da minha infância
pavorosamente perdida...

Cidade triste e alegre,
outra vez sonho aqui...

Eu?

Mas sou eu o mesmo
que aqui vivi,
e aqui voltei,
e aqui tornei a voltar,
e a voltar.

E aqui de novo
tornei a voltar?

Ou somos todos os Eu
que estive aqui ou estiveram,
uma série de contas-entes
ligados por um fio-memória,
uma série de sonhos de mim
de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
com o coração mais longínquo,
a alma menos minha.

Outra vez te revejo
- Lisboa e Tejo e tudo -,
transeunte inútil de ti e de mim,
estrangeiro aqui como em toda a parte,
casual na vida como na alma,
fantasma a errar
em salas de recordações,
ao ruído dos ratos
e das tábuas que rangem
no castelo maldito
de ter que viver...

Outra vez te revejo,
sombra que passa
através das sombras,
e brilha
um momento
a uma luz fúnebre desconhecida,
e entra na noite
como um rastro de barco
se perde
na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico
em que me revia idêntico,
e em cada fragmento fatídico
vejo só um bocado de mim -
um bocado de ti e de mim!...



in ~LISBON REVISITED (1926)- (Álvaro de Campos

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ah! cada bocado
destes numa ânsia
numa fome
numa sede
numa voragem
sem fim

e no entanto
eu aqui
você aí
e a música já começou
e ninguém dançou
espero você
e me angustio com as batidas
na porta da frente
toda vez que sinto
que é o tempo
inexorável tempo
tempo que estás assim
tão longe
muito ao longe
de mim



1/2 beijo sabor floresta negra

aNTONIocARLos
Neste setembro
sem volta

2 comentários:

Anônimo disse...

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

Carlos, veja só a sincronicidade das coisas... Estou num momento "Àlvaro de Campos" da vida. Obviamente, não na genialidade, mas nos sentimentos conturbados.

"Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmolas às portas da alegria."

Marina

Anônimo disse...

"Nem um barco
Nem um peixe
Cai a tarde
Quem sabe meu nome?
Paisagem
Ninguém se mexe
Paira o sol
Meu bem terá ciúme?
Meu namorado erradio
Sai de déu em déu a me buscar
Pai, olha que o tempo vira
Pai, me deixa caminhar ao vento
Vento"
(A Ostra e o Vento - Chico Buarque)

Marina.