terça-feira, 15 de setembro de 2009

Chegaram-me





E a música de todos os amores impossíveis!




Chegaram-me
as duas linhas e meia
que me escreveste.

Pareceram-me feitas
por uma senhora muito séria,
muito séria! muito antiga, muito devota,
dessas que deitam água benta na tinta.

Tanta gravidade,
tanta medida,
só vejo em documentos oficiais.

Até sinto desejo
de começar esta carta assim:

"Exma.Sra.: tenho a honra
de comunicar a V. Exa., etc".


Onze palavras!

Imagino o que um indivíduo
experimenta ao receber
onze palavras frias
da criatura que lhe tira o sono?

Não imaginas.

E sabes o que vem a ser isto
de passar horas acordado,
sonhando coisas absurdas?

Não sabe.
Pois eu te conto.

Sento-me à banca,
levado por um velho hábito,
olho com rancor
uma folha de papel,
que teima em tornar-se branca,
penso que o Natal
é uma festa deliciosa.

Os bazares, a delegacia de polícia,
a procissão de Nossa Senhora do Amparo...

E depois o jogo dos disparates,
excelente jogo.

"Iaiá caiu no poço".

Ora o poço!
Quem caiu no poço fui eu.

Principio uma carta
que devia ter escrito há três meses,
não posso concluí-la.

Fumo cigarros sem contar,
olhando um livro aberto,
que não leio.

Dançam na minha cabeça
uma chusma de idéias desencontradas.

Entre elas, tenaz,
surge a lembrança de uma criaturinha
a quem eu disse aqui em casa,
depois da prisão do vigário,
nem sei que tolices.

Apaga-se a luz, deito-me.

O sono anda longe.

Que vieste fazer em Palmeira?

Por que não te deixaste ficar onde estavas?

Não consigo dormir.
O nordeste, lá fora, varre os telhados.

Na escuridão vejo distintamente
essa mancha que tens no olho direito
e penso em certa conversa
de cinco minutos, à janela do reverendo.

Por que me falaste daquela forma?

Desejei que o teto caísse
e nos matasse a todos.

Andei criando fantasmas.

Vi dentro de mim
outra muito diferente
da que encontrei naquele dia.

Por que me quisestes?

Deram-te conselhos?

Por que apareceste mudada
em vinte e quatro horas?

Eu te procurei porque
endoideci por tua causa
quando te vi pela primeira vez.

É necessário que isto acabe logo.

Tenho raiva de ti, meu amor.

Fui visitar o Padre Macedo.
Falou-me de ti,
mas o que me disse foi vago, confuso,
diante de dez pessoas.

É triste que,
para ter notícias tuas, minha filha,
eu as ouça em público.

Foram minhas irmãs
que me disseram
o dia do teu aniversário
e me deram teu endereço.


Tinha razão quando afirmaste
que entre nós não havia nada.

Muito me fazes sofrer.

É preciso que tenhas confiança em mim,
que me escrevas cartas extensas,
que me abras largamente
as portas de tua alma.


Beijo-te as mãos, meu amor.

Recomendo-me aos teus,
com especialidade a dona Lili,
que vai ser minha sogra, diz ela.

Acho-a boa demais para sogra.

Amo-te muito.

Espero que ainda venhas
a gostar de mim um pouco.

Teu Graciliano.


Palmeira, 16 de janeiro de 1928.


in Cartas para Heloísa - Graciliano Ramos




é isso
e nada mudou
quando não se escreve
o suficiente
sempre fica
um gosto
de abandono
e de solidão
então...

por que
não me escreves...?


não é?
dona moça

décimo quinto
Setembro
2ºº9

aNTONIocARLos


música : Carly Simon

6 comentários:

Anônimo disse...

"Dançam na minha cabeça
uma chusma de idéias desencontradas."

"é isso
e nada mudou
quando não se escreve
o suficiente
sempre fica
um gosto
de abandono
e de solidão
então...

por que
não me escreves...?


não é?
dona moça"

Bom dia, Antônio Carlos!

Continuo "degustando" tudo o que você posta.

A sua "dona moça" não te escreve?
O dono dos meus olhos tb não.
Algo contra que amigos - mesmo que apenas virtuais - o façam?

"Ando tão à flor da pele
Que meu desejo se confunde com a vontade de não ser
Ando tão à flor da pele
Que a minha pele tem o fogo do juízo final
Um barco sem porto sem rumo sem vela cavalo sem sela
Um bicho solto um cão sem dono um menino um bandido
Às vezes me preservo noutras suicido."

Bjim,

Marina.

Anônimo disse...

Amigo querido!!
Meigo abraço
e beijo.

Anônimo disse...

Quanta saudade...
Falta peito, falta espaço...
Sobrou tempo...

Senti a distância, sua longa ausência,
(Sempre me perguntei se isso era realmente necessário)
Fui me acostumando...

Hoje, dói na medida justa e eu e a saudade já somos amigas.

De resto, emagreci, envelheci, cresci, aprendo a me apropriar do que é meu.

Bom te re-ver, mesmo que seja pela telinha e daqui do Sul (de Minas).

Beijos

Anônimo disse...

Quanta saudade...
Falta peito, falta espaço...
Sobrou tempo...

Senti a distância, sua longa ausência,
(Sempre me perguntei se isso era realmente necessário)
Fui me acostumando...

Hoje, dói na medida justa e eu e a saudade já somos amigas.

De resto, emagreci, envelheci, cresci, aprendo a me apropriar do que é meu.

Bom te re-ver, mesmo que seja pela telinha e daqui do Sul (de Minas).

Beijos

Anônimo disse...

Cor-respondência

Remeta-me
os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era seu jeito
ou de propósito
mas era bom
sempre bom
e assanhava as tardes
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.

(Elisa Lucinda)

IaraLuciaKoch disse...

O que admiro em ti (entre outras) é tua capacidade de encontrar na literatura as palavras certas, sempre. Ah! E a tua musicalidade, claro!
Sabe? Penso que a tua "dona moça" é dona dos teus sonhos. Será que um dia conseguirás fazer dela tua realidade? Ou tua pretensão não é mais do que essa mesma...um sonho!
Beijo e mais do que duas linhas e meia,
Iára Lúcia